18.3.10

Sagrada alamorfia

Vivo no meio de, por volta de meio bilião, ou talvez mais...nunca tive jeito para contar chego ao vinte e perco-me. Sei que todos os dias os meus companheiros de sofrimento desaparecem, por volta de um milhão, perto disso ou um pouco mais, para chegar outro milhão. Devo ser o mais velho daqui e só vivi umas poucas primaveras, ou nem isso, pois nunca sei quando passam os dias estou sempre ofuscado pelas luzes eternas, estas artificiais, nem sei se vi o Sol uma única vez, mas sei que já sinto uma dor constante nas pernas. Mas que ando por aqui a dizer ainda não vos falei de como entrei aqui. Talvez seja melhor começar pela história que a minha mãe me contou quando ainda nem me tinha sido dito um objectivo. Minha mãe, a mulher mais bela que alguma vez tinha visto, mais generosa e mais faminta. Ela tinha-me dito enquanto estava numa gaiola por baixo de mim, nunca tivera a hipótese de se quer tocar ou nunca ter sido tocado por ela, que muito antes desta vida que temos, vida outra que não conheço, muito antes de terem nascido os nosso avós, tetravós e até os tetra-infinito-avós , já vos disse que não sei contar, existia um mundo gigante, de céu azul, uma luz que se apagava de x's em x's horas, nunca me tinham me dito quanto era, já ninguém sabia. onde a comida não era dividida por esta irmandade toda., onde tínhamos espaço de sobra para podermos andar e descansar. Era um mundo idílico, uma utopia como agora costumamos chamar. Mas esta história nunca foi acabada, pouco tempo depois fui retirado de perto da minha mãe. Fui para um sítio donde todos nós passamos, um sitio que todos tememos dizer o nome. Lá provocam a maior dor, não sei se será a maior mas naquele momento não conseguia pensar noutra coisa e nunca serão capazes de compara-la a outra dor que seja infligida assim. Foi-me cortado com alicates, talvez tenha sido uma tesoura não as sei distinguir, a ferver as minhas mãos e a quem não serviria para procriar, como foi o meu caso, imaginem o que me cortaram. Esta foi a minha vida inicialmente, se pensam que foi mais fácil enganam-se. Depois disto fui enviado para um campo mais pequeno, onde pela primeira vez tive contacto com outros semelhantes a mim, os meus irmãos de sofrimento. Todos eles tinham passado pelo o que passei, pelo o que vivi. Juntámo-nos em vários grupos cada um debatia, mais imaginava, as suas revoltas, as suas lutas contra este regime, tão inocentes que éramos. Todos nós já conhecíamos a vida anterior que levávamos e todos ansiávamos conhecer o outro mundo para lá destas paredes. Já tinham passado alguns dias, ou algumas horas, quando de novo fomos transportados para outro local, para este onde vos conto esta história. Foi nesse local que assisti à  maior brutalidade que até agora nunca vi igual e já vi muitas. Assisti ao espancamento de vários amigos meus por um animal esquisito, que sentia uma eterna felicidade por cada murro, pontapé, cuspidela atingia um clímax nunca antes visto e nada o conseguia parar e nada podíamos fazer, cada um que se aproximava era um que ficava envolvido nesta cena de pancadaria. Nunca mais esquecerei isto. Após uma semanas, ou dias, vi muitos dos meus camaradas a sair por uma porta que todos temiam, nunca percebi o que era, só naquele instante é que entendi quando ouvi meus camaradas a gritarem, gritos horripilantes que nunca mais deixarei de ouvir. Agora chego a este momento onde nunca mais verei algo como o Sol, ou algo como a nossa utopia, mas deixo este manifesto aos pequenos que chegam agora, sei que um dia chegaremos a ver o Sol e quando chegar esse dia....
Vejo alguns daqueles animais a aproximarem-se para esta zona, talvez seja a minha vez de ir por aquela porta, não se esqueçam da nossa utopia. É chegada a minha hora, empurram o meu grupo, do qual eu sou o mais velho, sinto que só vivi um inverno, talvez nem tenha chegado a um inverno. É a minha vez de passar a porta.

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